terça-feira, 31 de março de 2015

a viagem do elefante

Sempre acabamos por chegar aonde nos esperam.

Em um dos últimos textos publicados eu disse que me sentia admirado com a nossa capacidade de transformar as chegadas, não raras às vezes, em partidas. Talvez eu quisesse usar o verbo “espantado” ao invés de “admirado”, para ilustrar de alguma maneira que as chegadas de uns são as partidas de outros (estava contaminado com o recente caso do copiloto alemão). 

Para chegadas, leia-se cumprir com o objetivo. Não é necessário entendê-las de forma literal, como consequência somente de viagens. Chegada, aqui, é sinônimo de atingir o termo de um movimento ou de uma intenção. E afinal, qual é o movimento e intenção da vida? 

Ilustração de João Amaral

Recorro novamente a José Saramago para falar um pouco mais sobre isso. “A viagem do elefante” narra parte da história de Salomão (ou Solimão), um elefante indiano que, após passar um tempo esquecido em Lisboa, é oferecido pelo rei Dom João III ao arquiduque da Áustria Maximiliano II (seu primo) em meados do século XVI. O livro em si não traz grandes fatos além da própria viagem, vencida nas patas, e conduzida pelas forças armadas ora portuguesas ora austríacas, com apoio do cornaca Subhro (ou Fritz). Parece que, dada à falta de registros históricos, o escritor precisou utilizar ainda mais de sua imaginação na construção do enredo que para alguns é romance e, para outros, conto. 

Entretanto, o grande feito da obra é que esta poder entendê-la como uma metáfora da vida humana. Salomão (ou Solimão) é escolhido propositalmente como personagem central da história porque, sob essa ótica, representa a vaidade dos governantes na condução do Estado, preocupados muito mais com as aparências e os símbolos do poder. Também traz a tona o indivíduo (no caso Subhro, ou Fritz) que se utiliza do aparato estatal para seus interesses próprios (benefícios e lucros pessoais, especialmente nos episódios do falso milagre e da venda dos pelos de Salomão, ou Solimão). Além disso, o elefante ainda percorre seu trajeto sem saber aonde vai e quem o espera. Vence os caminhos tortuosos a ele impostos, tempestades, nevascas e morre um ano após chegar ao seu destino, tendo as patas que o carregaram transformadas em objetos de muito mal gosto. 

Em resumo, pode-se dizer que a viagem do elefante se assemelha a longa estrada da vida. Por circunstâncias diferentes umas das outras, uma hora seremos recepcionados por quem nos espera. E então nossa chegada também poderá ser chamada de partida.
31/mar-2015

segunda-feira, 30 de março de 2015

Ângelo

Mesmo que o nome do personagem fosse outro, eu continuaria me sentindo representado nos desenhos. São do Laerte Coutinho.

domingo, 29 de março de 2015

Curitiba, 322 anos


Em busca de Curitiba perdida

Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça - galiii-nha-óóó-vos - não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental discursa para a estátua do Tiradentes.

Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina da Escola Normal; do Jegue, que é o maior pidão e nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi); com as filas de ônibus, às seis da tarde, ao crepúsculo você e eu somos dois rufiões de François Villon. Curitiba, não a da Academia Paranaense de Letras, com seus trezentos milhões de imortais, mas a dos bailes no 14, que é a Sociedade Operária Internacional Beneficente O 14 De Janeiro; das meninas de subúrbio pálidas, pálidas que envelhecem de pé no balcão, mais gostariam de chupar bala Zequinha e bater palmas ao palhaço Chic-Chic; dos Chás de Engenharia, onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá; das normalistas de gravatinha que nos verdes mares bravios são as naus Santa Maria, Pinta e Nina, viajo que me viaja. Curitiba das ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões - com seu rei Candinho - e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo. Não a do Museu Paranaense com o esqueleto do Pithecanthropus Erectus, mas do Templo das Musas, com os versos dourados de Pitágoras, desde o Sócrates II até os Sócrates III, IV e V; do expresso de Xangai que apita na estação, último trenzinho da Revolução de 30, Curitiba que me viaja.

Dos bailes familiares de várzea, o mestre-sala interrompe a marchinha se você dança aconchegado; do pavilhão Carlos Gomes onde será HOJE! só HOJE! apresentado o maior drama de todos os tempos - A Ré Misteriosa; dos varredores na madrugada com longas vassouras de pó que nem os vira-latas da lua.

Curitiba em passinho floreado de tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de estudantes, ah! que se incendeie o resto de Curitiba porque uma pensão é maior que a República de Platão, eu viajo.

Curitiba da briosa bandinha do Tiro Rio Branco que desfila aos domingos na Rua 15, de volta da Guerra do Paraguai, esta Curitiba ao som da valsinha Sobre as Ondas do Iapó, do maestro Mossurunga, eu viajo.

Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo. Eu sou da outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto; dos sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas asas de um morcego; do bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber água.

Viajo Curitiba das conferências positivistas, eles são onze em Curitiba há treze no mundo inteiro; do tocador de realejo que não roda a manivela desde que o macaquinho morreu; dos bravos soldados do fogo que passam chispando no carro vermelho atrás do incêndio que ninguém não viu, esta Curitiba e a do cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu eu viajo.

Curitiba, aquela do Burro Brabo, um cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler, quem foi? quem não foi? foi o reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo, esta Curitiba viajo.

Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é - província, cárcere, lar - esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.

Dalton Trevisan

O "Vampiro" fala de sua cidade. Texto extraído do livro "Mistérios de Curitiba", Editora Record, Rio de Janeiro, 1979, pág. 84.

quinta-feira, 26 de março de 2015

chegadas e partidas

Bleu et rouge, de Miró.

Para quem convive diariamente com o tráfego de aviões, por residir apenas alguns metros abaixo de suas rotas, é natural depois de um tempo ter que associar a audição, pensamento e atenção para perceber, de fato, o barulho de suas turbinas. A situação se assemelha à saturação do olfato por um cheiro qualquer, que só é sentido novamente se for trazido à consciência intencionalmente. Se assim não for, barulho e cheiro passam despercebidos.

Mas mesmo acostumado com o som das aeronaves e conformado de que elas compõe a paisagem que escolhi para viver, ainda não deixei de enxergá-las como produtos da capacidade humana de criar mecanismos para facilitar a vida. Não fosse o barulho de suas turbinas e o conjunto da obra que por si só já nos chama atenção, eu continuaria abrindo a janela para vê-las passar sobre minha cabeça, imaginando, como sempre faço, que palavras o piloto usaria ao se dirigir aos passageiros em algum momento específico do voo, desejando-lhes boas vindas antes do pouso ou lamentando um problema mecânico antes da queda.

No primeiro caso, imaginaria a mãe que aguarda a autorização para dizer ao filho, pelo celular, que chegou, ou o filho, que retira os fones dos ouvidos satisfeito por saber que os pais já estão a postos a sua espera. Já no segundo caso, imaginaria os gritos de horror, as súplicas a Deus, os abraços apertados, as mãos suadas, as últimas palavras de amor antes da explosão. Imaginaria um copiloto assumindo o controle por apenas alguns minutos, após uma esticada de pernas do comandante ao lado de fora da cabine.

Sem saber de onde vêm ou pra onde vão, sem ao menos conhecê-los, ficaria feliz pelos que conseguiram chegar depois de sujeitarem-se ao acaso. Ficaria feliz porquê chegar tende a ser o objetivo de qualquer partida. Para os que não conseguissem, me compadeceria do choro dos familiares pelas vidas interrompidas e amargaria a mesma tristeza em busca de uma explicação para os tantos porquês que viriam à tona. Ficaria curioso sobre como cada ente continuaria vivendo a partir de então, quais lembranças daqueles que se foram guardaria na memória, e buscaria entender os mistérios do universo que levaram um ou outro a desistirem do embarque minutos antes da decolagem. 

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Mas, pensando bem, os aviões são meros detalhes e poderiam ser substituídos aqui por qualquer outra coisa inventada pelo homem. Ao reler o que acabo de escrever acima, percebo que o que me admira, de verdade, é a motivação da vida lá fora representada no barulho das turbinas, e não necessariamente os mecanismos criados para facilitá-la. Admira-me, mesmo, essa força estranha que supomos conhecer e que nos impulsiona, mas que num sopro de tinta, numa fração de segundos, trai a mão do escritor e acaba dizendo o contrário daquilo que objetivava a caneta. 

Mais do que os mecanismos criados pra facilitar a vida, admira-me essa nossa capacidade sobre-humana de transformar a chegada, não raras as vezes, em partida.
26/mar-2015

sexta-feira, 20 de março de 2015

pai e filho, de fé

Já ouvi muita gente dizendo que o melhor pai é aquele que o filho o tem como amigo. Já ouvi, porém, que ser amigo do filho faz com que este saia em busca de um pai. Como dimensionar o que é saudável numa relação habitualmente tensionada?

Na primeira, segunda e terceira infâncias parece-nos que ser pai e ser filho é o que basta. Nesse período o filho busca a proteção de um pai que seria natural querer protegê-lo (ou pelo menos deveria), numa constante retroalimentação. Depois disso, a afeição entre os dois pode até caracterizar um laço de amizade no que diz respeito à lealdade, altruísmo e confidencialidade, mas isso não significa dizer que a partir da adolescência pai e filho necessariamente se tornam amigo um do outro, no sentido mais puro da palavra.

A relação parece se tornar mais amistosa, de fato, quando o filho deixa de idealizar o pai e passa a reconhecê-lo como sujeito de defeitos, sem dispor de superpoderes, exatamente igual a qualquer outro ser-humano. O pai - que aos olhos do filho jamais errava - torna-se, então, alguém com o que o filho pode conversar de igual para igual. 

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Eu devia ter uns oito anos quando fomos à pista de motocross da cidade assistir um dos mais renomados acrobatas sobre duas rodas do país. Eu, meu pai e alguns parentes. Na época era permitido que a plateia bebesse cerveja durante o espetáculo de “desafio à vida”. Se me perguntassem, hoje eu não conseguiria precisar o número de pessoas que estava dentro do circuito, mas dá pra dizer que, se metade da cidade estava lá, certamente uma metade desta metade estava alcoolizada.

Por óbvio que, dadas às circunstâncias, o caos se instalou após dois homens iniciarem uma discussão ao nosso lado. Pasmo, eu ficava olhando as trocas de socos e pontapés cada vez mais acentuadas na confusão que se tornara generalizada. Pensava que alguém deveria fazer algo para apaziguar a situação, com a única certeza de que esse alguém só poderia ser meu pai. Eu o idealizava.

Foi então que ele me puxou pelo braço e disse que iríamos pra casa. Como que o único ente capaz de resolver aquilo tudo, num ato de covardia, simplesmente iria embora? Sua medida protetora me deixou absolutamente decepcionado e sem entender nada! Anos depois, rememorando o caso e tentando assimilar as contingências daquela atitude, percebi que não foi coragem o que lhe faltou. Sobrava-lhe amor, isso sim, amor de pai. Suficiente o bastante para que, a partir dessa e outras decepções que se seguiram, eu futuramente pudesse olhar em seus olhos, como fazem os de fé e irmãos camaradas, e compreender que na vida nem todas as brigas valem a pena ser brigadas.

Do Bill Watterson. Clique para ampliar.

18/mar-2015

quarta-feira, 11 de março de 2015

em e-mail não se usa cedilha

É fato que ler contribui (e muito) para uma escrita melhor. Utilizando-se de termos da estatística para descrever essa relação, poderia dizer que se trata de uma correlação perfeita positiva entre as duas variáveis, com de Pearson igual a um (1).

A explicação é bastante parcimoniosa, pra não dizer óbvia: ler aumenta a capacidade de imaginação, memória, atenção e concentração, estimula as redes e conexões neurais e, entre tantos outros benefícios, contribui para ampliação do vocabulário. Logo, a redação daquele que muito lê, por estar mais preparado, geralmente flui muito melhor quando comparada com a de quem não lê (ou lê pouco). Quanto mais bem escrito é o texto mais leituras e trabalho o autor teve para produzi-lo. 

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A psicologia exige muita leitura de seus discentes. São horas voltadas às inúmeras abordagens e teorias que compõe as disciplinas do curso, mas não dá pra afirmar o mesmo sobre a produção escrita. Talvez por que a expressão verbal seja fator predominante para uma boa prática psicológica? Uma pergunta que pode servir de resposta. Até parece fazer sentido, mas não convence.  

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- “Comicoes” você quis dizer, né? Em e-mails não se usa cedilha... 
- Não! É “comissoes” mesmo minha senhora, não estou enganado. C-o-m-i-s-s-o-e-s. Se escreve com dois “s” e sem til. Aquele acento que parece uma cobrinha, sabe?  

11/mar-2015

parada cardíaca


essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro

vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito,
sentir é muito lento

(p. leminski)

segunda-feira, 2 de março de 2015

a festa da insignificância

Encontrar uma resposta sobre os motivos que levaram o umbigo a se tornar um símbolo erótico ou expressão da sexualidade humana. Isso, exatamente isso! Se me perguntassem o que vejo por detrás do enredo proposto por Kundera, que intitula esse post, certamente assim eu responderia.

Claro que se trata de uma metáfora sobre a individualidade humana. Por quê algo tão insignificante como o umbigo, presente em todos os corpos, nos torna tão únicos e ao mesmo tempo tão semelhantes? Talvez a explicação resida no fato de que o umbigo remete ao feto, à repetição, ao ciclo da vida que se alimenta da morte. Insignificância, então, é aquilo presente em tudo e em todos. É a essência da existência. 

Em contraponto ao que é natural (ou deveria ser), o autor denuncia uma hipocrisia social vã, marcada pela elevação da tristeza, vontade de poder e necessidade de compaixão. Na festa da insignificância - ou da vida -, há uma inversão de valores e o que realmente importa é deixado de lado. O umbigo, que anatomicamente é o ponto de equilíbrio do corpo, também passa a ser a chave que explica a maneira pela qual nos relacionamos com o mundo. 

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Passou na tevê o caso de um adolescente que se utilizou da compaixão de internautas para arrecadar fundos e conseguir bancar o tratamento de uma suposta grave doença que o havia acometido. O diagnóstico foi desmentido depois que uma médica viu seu nome em um falso laudo. O adolescente precisou explicar em rede nacional o motivo que o levou a agir desta forma. 

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Recentemente o neurologista e escritor Oliver Sacks publicou uma carta em que anuncia ter pouco tempo de vida por conta de uma doença terminal. Para muitos, trata-se de uma despedida de um dos mais renomados escritores que, no rigor da literatura cientifica, jamais deixou de encarar a vida com naturalidade e leveza.


01/mar-2015