segunda-feira, 12 de outubro de 2015

dalton dá o tom

O pai telefona para casa:

— Alô?
— ...

Reconhece o silêncio da tipinha. Você liga? Quem fala é você.

— Alô, fofinha.

Nem um som. Criança não é, para ser chamada fofinha. Cinco anos, já viu.

— Oi, filha. Sabe que eu te amo?
— Eu também.

"Puxa, ela nunca disse que me amava".

— Também o quê?
— Eu também amo eu.

Dalton Trevisan

domingo, 4 de outubro de 2015

sinestesia

Suspeitava o doutor Virgulino estar diante de um caso clássico de literatura, depois de ser procurado pelo introspectivo senhor Oswaldo - um jornalista respeitado por tecer comentários sobre política e economia em algumas colunas matinais de domingo. Queixava-se o paciente de uma confusão sensório-perceptiva que, embora percebida pelos que o rodeavam, segundo ele ainda carecia de um diagnóstico claro e de uma plano de tratamento efetivo. Dizia:

- Doutor, isso me acomete há pouco tempo. Ao identificar aquela cor - apontando para o vermelho - escuto uma canção; e é sempre a mesma. Tateio um tecido e sinto cheiro de perfume. Me preocupa a intensidade e a frequência com que estou tendo que justificar a confusão estabelecida em meus sentidos e refletida em minha escrita, pois afinal é dela que depende meu sustento. No último sábado troquei a fome pelo sono, o azedo pelo doce, a noite pelo dia. Meu medo, doutor, é que isso passe de uma confusão de sentidos para uma confusão de sentimentos.

A investigação permaneceu pelas sessões seguintes, cada vez mais recheadas de relatos supostamente sinestesicos. O doutor Virgulino buscava nas raízes da psicologia uma explicação para os sintomas apresentados e recorreu, mais de uma vez, a exames e tomografias, com o objetivo de localizar possíveis "disfunções biológicas" numa já superada perspectiva cartesiana. Mas nada encontrava para justificar os comportamentos de Oswaldo. Optara, desde o início, por um caminho menos parcimonioso e pagou por ele quando no quinto encontro, ofegante, o jornalista adentrou em seu consultório:

- Doutor, encontrei a resposta para meu problema. Percebi nos últimos dias que essa canção - novamente apontando para a cor vermelha - é àquela que tocava quando a conheci. Ela vestia-se suave, na mesma textura do perfume que sinto sempre quando dela lembro. A fome, doutor, na verdade eu substituí pela cama, porque dormir talvez me permitisse vê-la em sonhos. E ao acordar, até o limão me parecia mel. Agora minhas pernas tremem nos dias que sei que a vou encontrar. Quem diria, doutor, quem diria! Meu peito doendo e a taquicardia me matando... Sabe doutor, eu a busco todos os dias e de várias formas, das quais eu nunca imaginaria. Sim, eu sei que tudo isso tem um nome, doutor, não precisa me lembrar... Doutor, doutor, ela vem vindo! Como finjo que está tudo bem?

04/outubro-2015