terça-feira, 30 de abril de 2013

pequena

Ela sempre conviveu muito bem com as coisas pequenas. Cresceu em uma cidade pequena, estudou em uma escola pequena, se formou em uma faculdade pequena. Sua irmã e seus pais sempre foram pequenos, seus avós e bisavós também.

Já calçava 33 quando conseguiu emprego em uma pequena empresa. O salário era pequeno, mas com ele financiou um carro pequeno para trabalhar e um apartamento quase do mesmo tamanho para morar. O dinheiro e o saldo na conta bancária diminuíram; os compromissos, não. 

Namorou por mais de dois anos alguém que carinhosamente lhe chamava de “pequena”, até que um dia cansou de sua pequenez e da de todos que a cercavam. Tornou-se grande, inteira, sem nunca abrir mão dos sentimentos que carregava. Apesar de tudo, tinha um coração enorme, daqueles que não cabem no peito.

29/abril-2013

quinta-feira, 25 de abril de 2013

atrasado

Acordar tarde me deixa entediado e com enxaqueca. Cumpro minha jornada diária, faço hora extra e me levanto sempre de consciência pesada quando o alarme não toca pela manhã. Culpo-me por ter dedicado horas a mais ao tão necessário e tão esperado descanso; sinto-me um verdadeiro covarde.

Compenso as horas perdidas no almoço e devoro todo o combustível para rumar ao que me espera. Corto sinais e caminhos, corro e suo. Apresso-me nas atividades e às vezes me dou o luxo de tirá-las do lugar. É quando encosto a cabeça no travesseiro e, mesmo antes de dormir, já me pego pensando em acordar. Deito-me atrasado, me levanto dormindo. Deixo pra reclamar amanhã. 

25/abril-2013

terça-feira, 23 de abril de 2013

ando meio mais cansado

De uns tempos pra cá ando meio mais cansado que o habitual, a ponto de relutar em conferir o troco e terminar leituras obrigatórias. Ando meio mais tão cansado que até neguei uma nova cidade, um novo emprego e um novo salário. Por mais atraente que pareça, ando meio mais cansado pra começar outra vez.

De uns tempos pra cá ando meio mais cansado - e é verdade, a ponto de relutar em jogar futebol quando o Isaías me convida. Ele tem apenas 11 anos e eu ganharia com facilidade, mas andar meio mais cansado incomoda meus joelhos e não mais consigo correr. Ando meio mais tão cansado que inclusive não mais toparia segundos, terceiros ou décimos amores. Por mais prazeroso fosse conquistá-los, esquecer os primeiros me deixaria muito mais cansado.

23/abril-2013

quinta-feira, 18 de abril de 2013

alô, vó?

Depois de muita insistência meu avô presenteou minha avó com um celular: “A Lila gasta muito telefone fixo”, dizia ele irritado. Pois bem, no primeiro mês ela o deixou mais bravo ainda: aderiu a três promoções da operadora e usou os créditos em apenas um dia.

Incomodado com a situação, resolvi oferecer ajuda: “O verde liga, o vermelho desliga...”. Assim foi, até que depois de alguns dias recebi em meu celular duas mensagens na caixa postal (ambas sem dizerem nada), uma SMS em branco e outra me desejando feliz aniversário. Fui conferir o número do remetente e... batata! Tratava-se da vó Lila.

Pensei que ela havia aprendido as 'lições' sobre a tecnologia dos celulares, até receber a mesma mensagem 14 vezes e notar que aquele dia não era meu aniversário. Para me isentar da responsabilidade de ter que ensiná-la novamente, cheguei a seguinte conclusão: para não correr o risco de esquecer, ela resolveu me parabenizar pelos próximos 15 anos. E tá tudo certo!

18/abril-2013

terça-feira, 16 de abril de 2013

na volta pra casa

É na volta pra casa e no fundo do circular que busco o protagonista deste texto. Trata-se de um sujeito de paletó, calça social, gravata vermelha, sapato preto e que carrega consigo uma caixa de papelão recheada de batatas-doces. Aparenta meia-idade e procura incansavelmente algo guardado ou perdido nos bolsos internos do paletó. Seu desconforto com o traje é visível e o desajuste das peças em seu corpo também. 

Afinal, o que procura? Em época de segregação social aguçada, vale a pena refletir se é mais prudente se autotransformar em herói ou, simplesmente, vítima. São tantas as que padecem e padeceram pela falta dos primeiros que em algum momento pode ser útil se perguntar o que podemos fazer por elas ou para evitá-las. 

Enquanto a resposta não vem o sujeito continua ali, aflito. Olha atento ao redor e retira do bolso da calça um lenço de papel. Limpa os lábios com cuidado, seca o suor que escorre pela testa e, num ritual de adoração, lustra seu livro preto de capa grossa e inscrição dourada, antes imerso na caixa junto às batatas-doces. Pelo bem ou pelo mal, o risco iminente causado pelo consolo que qualquer fanatismo oferece ao fanático dessa vez não o autorizou a fazer mais nada além do que somente apertar o botão de parada, esperar as portas se abrirem e desembarcar no próximo ponto.

16/abril-2013

terça-feira, 9 de abril de 2013

patior

Apaixonei-me por ela logo no primeiro dia de aula, quando me olhou dos pés a cabeça ao dizer ‘bom dia’. Tomei aquilo como um convite para abusar de seu conhecimento durante seis meses seguidos, até nos perdermos de vista e eu desapaixonar. Como a vida nos prega peças, nos reencontramos 4 anos depois. “Os anos lhe fizeram bem”, brinquei; ela apenas riu.

Apaixonei-me por ela logo na primeira consulta, quando empunhou sua agulha na mão esquerda e disse ‘fique tranquilo’. Tomei aquilo como um convite a meu masoquismo psicológico. Minha paixão durou quase uma hora, até que busquei forças para levantar. Como a vida nos prega peças, nos reencontramos na semana seguinte. “Prontinho”, ela disse; eu apenas ri.

Apaixonei-me por ela na segunda vez que a vi, quando do alto de sua ousadia desejou-me ‘feliz ano novo’. Tomei aquilo como um convite ao perder-se. Andamos pela cidade, passeamos pelo parque, flertamos, cantamos e brigamos até anoitecer. Como o dia parecia curto, optamos por nos encontrar durante os meses seguintes, eu e ela, ela e eu, juntos e sem pudor. Assim foi e assim vai, até a vida nos pregar outra peça.

09/abril-2013