terça-feira, 25 de março de 2014

sobre a devolução da vida

Deveria haver qualquer coisa capaz de fazê-lo, uma pílula, comprimido, pastilha, cápsula, remédio, química, pó, um líquido, chá, mistura, substância, uma magia, uma raiz, planta, um Elixir da Longa Vida, um produto da transmutação de metais inferiores, um alquimista renomado, um costume xamã, um cientista messiânico, um filósofo irreverente, um sábio sabedor, governante responsável, um manifesto popular, dissertação de mestrado, tese de doutorado, antítese, síntese, um decreto, lei, regra, norma, padrão funcional, uma moral, ética, tradição, cultura, qualquer coisa, um rito de babuínos africanos, aborígenes australianos, índios brasileiros, bárbaros europeus, dos vândalos, godos, visigodos, ostrogodos, dos gregos, troianos, latinos, asiáticos, qualquer coisa, um hieróglifo egípcio, um código mesoamericano, maia, inca, asteca, uma inscrição suméria, acádia, amorita, assíria, elamita, neobabilônica, um lugar nos Andes, no cume de uma montanha, nos meandros de um rio em Oiapoque, no curso de outro em Chuí, qualquer coisa, um planeta escondido na Via Láctea, um insight incomum da astrologia, mais um signo do zodíaco, um resultado de loteria, um ponto a mais, um gol a menos, uma dança cigana, uma cratera específica na lua, uma estrela radiante, um item no projeto de criação do universo, um grafismo na planta desenhada pelo Criador, um artigo no manual dos proprietários da Terra, uma cláusula no contrato de incorporação do mundo, qualquer coisa, uma espécie aquática desconhecida, uma alga marinha na imensidão do oceano, um solo virgem em erosão no Himalaia, uma rocha sofrida pela ação do vento em Marrocos, uma estalagmite de ouro, uma estalactite de prata, uma junção de cores quentes, um raio solar premiado, um arco-íris preto e branco, um combinado de algarismos, uma fórmula matemática, geométrica, um denominador comum, uma amostra aleatória, estatística otimista, um processo físico quântico, alma caridosa, um Deus romano, Pai, Filho e Espírito-Santo, onipotente, onisciente, onipresente, trino, qualquer coisa... um sopro.

25/março-2013

quarta-feira, 5 de março de 2014

a morte e a morte de Quincas Berro Dágua

A incrível capacidade de Jorge Amado carnavalizar seus enredos coloca seu nome no topo da lista dos mais importantes escritores brasileiros. Carnavalizar, em seu sentido mais amplo, é misturar cristão e pagão, sagrado e profano, direita e esquerda, público e privado, arte e vida, vida e morte. Jorge Amado, brincando, transforma ficção em conto, em alucinação romanesca, em novela e verdade. 

O que dizer, por exemplo, de Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da mesa de rendas estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política, jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida, que mesmo morto de morte morrida ganhou ainda mais vida nas linhas do escritor? Joaquim, pasmem, virou Quincas Berro Dágua, o morto mais vivo do Brasil. Eis aqui a vida imitando a arte - a vitória de Arlequim sobre Pierrô, do id sobre o ego, da carne, do carnaval.

E como se já não bastasse à própria vida levada às avessas, o que para alguns configura um dos maiores motivos da vergonha, Quincas ainda teve de suportar o desprezo dos poucos existentes familiares, que, vencidos pelo cansaço, deixaram-no velar por seus mais fiéis amigos de botequim. Os desfechos sobre as mortes de Quincas deixarei à mercê da curiosidade dos leitores. Mas alerto, não há nada mais tragicômico que velório de bêbado. É a arte imitando a vida!
05/março-2014