quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

tempos líquidos

Não é preciso conhecer de almas para saber que os sismos existenciais acompanham os seres humanos desde os primórdios de sua história. Em épocas como a que temos vivido, em que as estruturas sociais se dissolvem mais rápido do que o próprio tempo que levam para se estabelecerem, talvez fique mais aguçada nossa capacidade de se estranhar, olhar para si e se perguntar: qual é a parte que me cabe de tudo isso que aí está?

Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a velocidade da informação e a modernidade tem nos feito encarar a sociedade muito mais como uma “rede” do que como uma “estrutura”, através de uma matriz de conexões e desconexões aleatórias com um volume essencialmente infinito de permutações possíveis. Implicitamente e de forma bastante sutil, significa dizer que o bem-estar de um lugar, qualquer que seja, nunca é inocente em relação à miséria do outro, e não há meios para que se possa escapar desta relação.

Com o triunfo do capitalismo global, diga-se de passagem perfeitamente questionável, tudo o que excede ao ser humano ganha notoriedade pela quantidade. Este excesso o autor chama de “lixo”, que, por sua vez, pode ser o próprio ser-humano, quando não é acolhido pelo sistema social a que está inserido, seja pela hibridez das instituições ou pela reorganização dos padrões comportamentais ditos aceitáveis.

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Tenho usado a bicicleta como meio de transporte para fazer o trajeto casa-trabalho. Recentemente, voltando pra casa, me deparei com um amontoado de “lixo” trancando a passagem na ciclovia, exatamente num trecho em que não havia espaço para contorná-lo sem obrigatoriamente entrar numa das mais perigosas avenidas da cidade. Na velocidade em que os perigos noturnos me impõe, parei à espera de que o trânsito diminuísse e eu pudesse sair com segurança pela avenida. Mas de repente, não mais que de repente, do meio daquele “lixo” amontoado, apareceu um homem negro, sujo e visivelmente amedrontado. Não me disse nada, mas olhou nos meus olhos como se precedesse um pedido de desculpa pelas buzinas que eu levaria logo após adentrar na avenida.

Nenhum ambiente por onde se conduz a vida humana jamais ofereceu um seguro infalível contra os golpes do “destino”, que, por definição, difere muito de adversidades ou de qualquer situação que pode ser prevista ou controlada. Nesse caso, mais importante do que se questionar sobre se morrer atrapalhando o tráfego seria falta de sorte ou obra do destino, é se perguntar como tudo isso poderia ser evitado. Novamente: qual é a parte que me cabe de tudo isso que aí está?

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Vivemos tempos líquidos e agora parece que a célebre frase de Marx cada vez faz mais sentido: "tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas". 

Portanto sou eu é que lhe peço perdão, homem negro, sujo e visivelmente amedrontado. A culpa por tudo isso que aí está é minha também.

Clique para ampliar. É do Quino.
19/fev-2015

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

os demônios de Loudun

Quando se fala em Aldous Huxley geralmente associamos sua imagem à publicação de “Admirável Mundo Novo”, (1931), considerada sua obra-prima por apresentar reflexões sobre a relação existente entre o autoritarismo e as liberdades individuais da sociedade moderna. No entanto, o autor tem um vasto currículo de obras publicadas, do conto ao poema, mas pouco conhecidas ou lembradas pelo público em geral. 

“Os demônios de Loudun”, (1952), entretanto, pode ser encontrado na estante dos romances, da História e, se forçarmos um pouco, também na de biografias. Isso porque se trata de uma investigação histórica realizada a partir de documentos e obras anteriormente publicadas sobre os idos anos 1600 na França, quando Igreja e Estado eram quase que duas entidades indissociáveis. A erudição de Huxley para a escrita romanceia as provas documentais e os intensos debates sobre questões religiosas, políticas e filosóficas, sem desrespeitar a historiografia do período e as várias versões dadas ao mesmo fato. Ingressar na leitura sobre os ditos “demônios” da pequena Loudun é mergulhar em mais de trezentas páginas sobre um extenso tratado teológico com pitadas da psicanálise.

Bem sabemos que a Igreja nesse período não era um bom exemplo de instituição idônea. Com religião e política caminhando juntas, ter sucesso na hierarquia clerical era apenas uma questão de tempo para quem mantivesse “boas” relações com membros da cúpula estatal. E foi assim que o jovem padre de educação jesuíta, Urbain Grandier, se tornou pároco da St-Pierre-du-Marche em Loudun, no ano de 1617. Com sermões eloquentes, que suscitavam a admiração das beatas e a inveja de seus colegas sacerdotes, Grandier aos poucos foi ganhando fama de libertino, por “ignorar” os votos do celibato. Contribuiu para isso, por exemplo, o fato de manter relações com a jovem adolescente Phillipe Trincant até engravidá-la, quando, dado o acontecido e temendo represálias de seus superiores, obrigou a jovem a negar a criança. Assim, ia conquistando aos poucos peças importantes para seu rol de inimigos - um deles era o próprio pai da jovem, figura pública da cidade com quem anteriormente mantinha uma boa relação pessoal e social. 

Acusado mais de uma vez de transgredir os bons costumes e a ordem moral, o padre foi perdendo força de defesa entre seus padrinhos. Quando se negou a conduzir um convento de freiras ursulinas, coincidentemente dias depois um atípico furor uterinus coletivo passou a tomar conta das irmãs que, entre inúmeros episódios convulsivos, alegavam ter fantasias sexuais imaginárias com o padre. Segundo relatos das próprias ursulinas, este aparecia na imagem de um anjo radiante e, obviamente, isso foi o suficiente para que Grandier recebesse mais algumas acusações, como de feitiçaria e possessões demoníacas. 

Na época a feitiçaria era considerada um crime gravíssimo, com jurisprudência para pena de morte (ser queimado vivo em praça pública). A lei apontava que para situações como essa, o(a) acusado(a) deveria ser posto em tortura até confessar; se não confessasse, era porque Leviatã o(a) dava forças para não fazê-lo. Ou seja: não havia argumentos para contestar o destino traçado por seus algozes. Assim, trancado em um quarto sem iluminação, com as janelas fechadas com tijolos para que os demônios não fugissem, Grandier teve seu corpo depilado à procura de “marcas” que comprovariam seu pacto com o demônio. Ali ele permaneceu até que fosse proferida a sentença final, após três audiências com os juízes e sem sequer nunca ter conhecido pessoalmente nenhuma das freiras do convento das ursulinas. Sua via-crúcis é detalhada no livro de forma dramática e, no limite dos documentos históricos, abre espaço para a imaginação do autor e dos leitores, buscando a construção de uma verdade possível sobre as bruxarias e possessões em Loudun. 

Ilustração da execução de Urbain Grandier, em 1634

Nas entrelinhas da História Huxley ironicamente problematiza o que seria subjacente às possessões demoníacas de Loudun e os procedimentos adotados pelos exorcistas. A impressão causada é que, para o autor, afirmar a autonomia de uma entidade espiritual sobre si foi uma maneira encontrada para dar vazão àquilo que é inerente a condição humana, mas que, para uma sociedade ainda medieval, era uma baita imoralidade. Em outras palavras, reconhecerem-se como seres abjetos (mesmo que no campo da imaginação) livrou as freiras ursulinas da condição de serem obrigatoriamente castas. No mínimo interessante, não?
05/fev-2015