Não é preciso conhecer de almas para saber que os sismos existenciais acompanham os seres humanos desde os primórdios de sua história. Em épocas como a que temos vivido, em que as estruturas sociais se dissolvem mais rápido do que o próprio tempo que levam para se estabelecerem, talvez fique mais aguçada nossa capacidade de se estranhar, olhar para si e se perguntar: qual é a parte que me cabe de tudo isso que aí está?
Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a velocidade da informação e a modernidade tem nos feito encarar a sociedade muito mais como uma “rede” do que como uma “estrutura”, através de uma matriz de conexões e desconexões aleatórias com um volume essencialmente infinito de permutações possíveis. Implicitamente e de forma bastante sutil, significa dizer que o bem-estar de um lugar, qualquer que seja, nunca é inocente em relação à miséria do outro, e não há meios para que se possa escapar desta relação.
Com o triunfo do capitalismo global, diga-se de passagem perfeitamente questionável, tudo o que excede ao ser humano ganha notoriedade pela quantidade. Este excesso o autor chama de “lixo”, que, por sua vez, pode ser o próprio ser-humano, quando não é acolhido pelo sistema social a que está inserido, seja pela hibridez das instituições ou pela reorganização dos padrões comportamentais ditos aceitáveis.
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Tenho usado a bicicleta como meio de transporte para fazer o trajeto casa-trabalho. Recentemente, voltando pra casa, me deparei com um amontoado de “lixo” trancando a passagem na ciclovia, exatamente num trecho em que não havia espaço para contorná-lo sem obrigatoriamente entrar numa das mais perigosas avenidas da cidade. Na velocidade em que os perigos noturnos me impõe, parei à espera de que o trânsito diminuísse e eu pudesse sair com segurança pela avenida. Mas de repente, não mais que de repente, do meio daquele “lixo” amontoado, apareceu um homem negro, sujo e visivelmente amedrontado. Não me disse nada, mas olhou nos meus olhos como se precedesse um pedido de desculpa pelas buzinas que eu levaria logo após adentrar na avenida.
Nenhum ambiente por onde se conduz a vida humana jamais ofereceu um seguro infalível contra os golpes do “destino”, que, por definição, difere muito de adversidades ou de qualquer situação que pode ser prevista ou controlada. Nesse caso, mais importante do que se questionar sobre se morrer atrapalhando o tráfego seria falta de sorte ou obra do destino, é se perguntar como tudo isso poderia ser evitado. Novamente: qual é a parte que me cabe de tudo isso que aí está?
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Vivemos tempos líquidos e agora parece que a célebre frase de Marx cada vez faz mais sentido: "tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas".
Portanto sou eu é que lhe peço perdão, homem negro, sujo e visivelmente amedrontado. A culpa por tudo isso que aí está é minha também.
Portanto sou eu é que lhe peço perdão, homem negro, sujo e visivelmente amedrontado. A culpa por tudo isso que aí está é minha também.
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19/fev-2015