quinta-feira, 26 de março de 2015

chegadas e partidas

Bleu et rouge, de Miró.

Para quem convive diariamente com o tráfego de aviões, por residir apenas alguns metros abaixo de suas rotas, é natural depois de um tempo ter que associar a audição, pensamento e atenção para perceber, de fato, o barulho de suas turbinas. A situação se assemelha à saturação do olfato por um cheiro qualquer, que só é sentido novamente se for trazido à consciência intencionalmente. Se assim não for, barulho e cheiro passam despercebidos.

Mas mesmo acostumado com o som das aeronaves e conformado de que elas compõe a paisagem que escolhi para viver, ainda não deixei de enxergá-las como produtos da capacidade humana de criar mecanismos para facilitar a vida. Não fosse o barulho de suas turbinas e o conjunto da obra que por si só já nos chama atenção, eu continuaria abrindo a janela para vê-las passar sobre minha cabeça, imaginando, como sempre faço, que palavras o piloto usaria ao se dirigir aos passageiros em algum momento específico do voo, desejando-lhes boas vindas antes do pouso ou lamentando um problema mecânico antes da queda.

No primeiro caso, imaginaria a mãe que aguarda a autorização para dizer ao filho, pelo celular, que chegou, ou o filho, que retira os fones dos ouvidos satisfeito por saber que os pais já estão a postos a sua espera. Já no segundo caso, imaginaria os gritos de horror, as súplicas a Deus, os abraços apertados, as mãos suadas, as últimas palavras de amor antes da explosão. Imaginaria um copiloto assumindo o controle por apenas alguns minutos, após uma esticada de pernas do comandante ao lado de fora da cabine.

Sem saber de onde vêm ou pra onde vão, sem ao menos conhecê-los, ficaria feliz pelos que conseguiram chegar depois de sujeitarem-se ao acaso. Ficaria feliz porquê chegar tende a ser o objetivo de qualquer partida. Para os que não conseguissem, me compadeceria do choro dos familiares pelas vidas interrompidas e amargaria a mesma tristeza em busca de uma explicação para os tantos porquês que viriam à tona. Ficaria curioso sobre como cada ente continuaria vivendo a partir de então, quais lembranças daqueles que se foram guardaria na memória, e buscaria entender os mistérios do universo que levaram um ou outro a desistirem do embarque minutos antes da decolagem. 

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Mas, pensando bem, os aviões são meros detalhes e poderiam ser substituídos aqui por qualquer outra coisa inventada pelo homem. Ao reler o que acabo de escrever acima, percebo que o que me admira, de verdade, é a motivação da vida lá fora representada no barulho das turbinas, e não necessariamente os mecanismos criados para facilitá-la. Admira-me, mesmo, essa força estranha que supomos conhecer e que nos impulsiona, mas que num sopro de tinta, numa fração de segundos, trai a mão do escritor e acaba dizendo o contrário daquilo que objetivava a caneta. 

Mais do que os mecanismos criados pra facilitar a vida, admira-me essa nossa capacidade sobre-humana de transformar a chegada, não raras as vezes, em partida.
26/mar-2015

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